Conselheiro da AASP
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“O Brasil não é um país sério”. Seja quem for o autor da frase, que reverbera nos ditados populares desde idos dos anos 1960, outra não pode ser a conclusão, quando o assunto gravita em torno do pagamento das dívidas do Estado, oriundas de condenações judiciais, os chamados precatórios.
De acordo com a Constituição Cidadã de 1988: “É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos, oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente.” (art. 100, §5º). Vale dizer que uma dívida oriunda de decisão judicial apresentada ao Executivo até o dia 1º de julho de um ano deve ser paga em valores atualizados até o dia 31 de dezembro do ano seguinte.
A despeito da clareza dessa disposição constitucional, que já encerra uma benesse não disponível aos devedores privados, os entes públicos em geral nunca cumpriram a regra prevista na Carta Política de 1988. Com o apoio do Poder Legislativo, desde então, vêm empurrado o pagamento da dívida em precatórios judiciais, que nos dias atuais já supera R$ 100 bilhões.
Em 1999, quando o atraso de grande parte dos devedores públicos já superava dez anos, veio de ser aprovada a Emenda Constitucional nº 62 (EC 62), que criou o chamado regime especial de pagamento de precatórios, inserido no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que dentre outras disposições concedia aos entes em mora o prazo de 15 anos para saldar a dívida, ou seja, até 2024.
Quatro anos depois, em 2013, no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) nº 4357, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou inconstitucional aquela e outras disposições da EC 62, decidindo, quanto ao prazo, que: “A possibilidade de o Poder Público dilatar por 15 anos a completa execução das sentenças judiciais transitadas em julgado significaria desrespeito às garantias do livre e eficaz acesso ao Poder Judiciário (inciso XXXV do art. 5º), do devido processo legal (inciso LIV do art. 5º) e da razoável duração do processo (inciso LXXVIII do art. 5º), além de afrontar a autoridade das decisões judiciais já insuscetíveis de recurso”. A “Emenda [haveria ferido] a própria divisão dos Poderes, posto que partir em até 15 anos a indenização significa, antes de tudo, fracionar o pagamento das execuções contra o Estado, tornando a Administração (função executiva) praticamente imune aos comandos do Poder Judiciário, além de transformar o adimplemento de precatórios em mera escolha política dos governantes”, conforme constou do emblemático voto do Ministro Ayres Britto.
Embargos declaratórios foram apresentados pleiteando a modulação dos efeitos daquela decisão. Assim, dois anos depois, em 2015, o STF cedeu à pressão dos devedores e concedeu a manutenção do “regime especial”, leia-se, a moratória, por mais cinco exercícios financeiros, até 31 de dezembro de 2020. O que acabou sendo chancelado meses após por outra emenda constitucional, a EC 94.
Não satisfeito, por encomenda do Executivo, em 2017 o Congresso Nacional aprovou nova emenda constitucional, a EC 99, que prorrogou a moratória para 31 de dezembro de 2024. Ou seja, nessa nova emenda foi resgatado o prazo de 15 anos que já havia sido declarado inconstitucional pela Corte Suprema em 2013, no julgamento da ADI 4357. Como contrapartida, o Legislativo adicionou na EC nº 99 alguns instrumentos que permitiriam, em tese, que a dívida fosse saldada no prazo novamente dilatado, dentre essas o uso de parte dos depósitos judiciais e a abertura de linhas especiais de crédito pela União Federal, com juros e prazos diferenciados, sem impactar nos limites de endividamento dos devedores.Parecia, então, que a saga dos credores em precatórios tinha dia e ano certos para acabar.
Mas, não. Nos três anos de vigência da EC nº 99 a mora estatal só aumentou, os depósitos judiciais foram apenas parcialmente utilizados, como única fonte de pagamento, e não foram abertas as linhas de crédito pela União, embora expressamente previstas na emenda. O Estado de São Paulo, o maior devedor de precatórios do País, continua tendo à sua disposição mais de R$ 9 bilhões em depósitos judiciais, suficientes para quitar um terço de sua dívida, mas não os utiliza, a espera do socorro da União, acumulando, nos dias atuais, 18 anos de atraso no pagamento dessa conta.
Com o advento da pandemia em 2020, estados e municípios devedores, sem poder contar com os créditos da União, que nunca vieram, se valeram do estado de calamidade pública como pretexto para suspender o pagamento de suas dívidas em precatórios, para tanto acionando a jurisdição do STF. Afirmaram perante a Corte Suprema que era impossível pagar os precatórios sem a abertura de financiamentos pela União. O que levou o Ministro Dias Toffoli, relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 58, a instituir um grupo de trabalho formado pelos entes devedores, União e OAB, para se buscar uma composição e, finalmente, uma solução para o impasse, que já durava mais de duas décadas. Medida sem efeito e hoje prejudicada, como se verá.
O velho adágio popular “nada está tão ruim que não possa piorar” recaiu novamente sobre os incautos credores do Estado brasileiro. Se 2024 já estava distante e, no entendimento da Suprema Corte brasileira, já configurava moratória inconstitucional, sem qualquer cerimônia o Poder Legislativo brasileiro veio a aprovar nova prorrogação da moratória, desta vez para dezembro de 2029 – um verdadeiro calote.
O Legislativo o fe
z da maneira mais subalterna e abusiva. Inseriu o calote na chamada PEC Emergencial (PEC 186/2019), também conhecida como PEC do Arrocho, na qual foi estrategicamente colocado o chamado auxílio-emergencial. O apelo e urgência na aprovação do auxílio justificou que se conferisse à PEC 186 um rito especial abreviado, sem passar por qualquer comissão e sem debate com a sociedade, indo diretamente à votação no Plenário da Câmara. Sorrateiramente, a PEC 186/2019 alterou não apenas o prazo previsto no art. 101 do ADCT, prorrogando-o para 2029, como também revogou o seu §4º, justamente o que previa a abertura de créditos especiais pela União, assim sepultando qualquer possibilidade de pagamento dos precatórios nos próximos anos, ou em tempo razoável.
A boiada passou de atropelo, como sugerido em uma famosa reunião ministerial, a despeito da oposição de alguns bravos parlamentares, em especial, no caso, da emenda do Deputado Fábio Trad (PSD-MS), que propunha a exclusão da matéria alusiva aos precatórios da PEC Emergencial, medida que não colocaria em risco a aprovação do auxílio-emergencial.
Estamos falando de credores que já amargam 17 ou 18 anos de espera pelo recebimento de seus créditos judicialmente reconhecidos e que, agora, deverão esperar por mais nove anos ou, quiçá, pela eternidade, até que venha a próxima PEC, para estender o calote para 2035, 2040, ou para quando não houver mais nenhum credor vivo para protestar.
O Estado brasileiro não paga suas dívidas, não cumpre as ordens judiciais, nem mesmo aquelas emanadas da Suprema Corte, totalmente desprestigiada. A quadro é de total descalabro. Enquanto isso, os credores dos precatórios vão se tornando espólios, com a morte de seus titulares, muitos deles dos chamados precatórios alimentares, decorrentes de parcelas salariais não pagas por estados e municípios a seus servidores.
A equação parece ser simples e de natureza puramente política, como vislumbrou Ayres Britto em seu voto na ADI 4357, nos idos de 2013. Espólios não votam. Espólios não vão às ruas e não protestam.
Não resta a menor dúvida, assim, que a Emenda nº 109 (ex-PEC 186) encerra manifesta inconstitucionalidade, como já decidido pelo Pretório Excelso na ADI 4357. Estão sendo abalados os alicerces do Estado de Direito, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho, a separação e harmonia entre os poderes, a inafastabilidade da jurisdição, a inviolabilidade da coisa julgada, a razoável duração do processo, a intangibilidade da propriedade, e, sem dúvida alguma, a legalidade e moralidade administrativa.
O não pagamento da dívida atenta também contra o princípio da eficiência da administração. Os precatórios são uma dívida onerosa para o Estado; são atualizados monetariamente e acrescidos de juros de mora mensais. Sem falar, ainda, que os mais de R$ 100 bilhões represados pelo calote deveriam estar circulando na economia, assim gerando mais arrecadação aos cofres públicos e o aquecimento do mercado, tão necessários, mormente agora em tempos de pandemia e recessão.
Que País é esse, onde o próprio Estado é infrator e caloteiro, não cumpre as decisões emanadas do Poder Judiciário, nem mesmo quando se trata de determinação da Suprema Corte? Até quando será possível tolerar essa imoralidade estatal?Até quando teremos que reconhecer e aceitar que o Brasil não é um país sério?
fonte: EditoraJC
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